Street Sweeper Social Club – 100 Little Curses

March 29, 2010

Carter: Kátia Abreu recebe 25 vezes mais dinheiro do Governo do que o MST

March 29, 2010

Em dezembro de 2009, Miguel Carter concluiu o trabalho de organizar o livro ‘Combatendo a Desigualdade Social – O MST e a Reforma Agrária no Brasil.’. É um lançamento da Editora UNESP, que reúne colaborações de especialistas sobre a questão agrária e o papel do MST pela luta pela Reforma Agrária no Brasil.

Esta semana, ele conversou com Paulo Henrique Amorim, por telefone.

Carter: exagerar o poder do MST é um preconceito de classe

PHA – Professor Miguel, o senhor é professor de onde?

MC – Eu sou professor da American University, em Washington D.C.

PHA – Há quanto tempo o senhor estuda o problema agrário no Brasil e o MST?

MC– Quase duas décadas já. Comecei com as primeiras pesquisas no ano de 91.


PHA – Eu gostaria de tocar agora em alguns pontos específicos da sua introdução “Desigualdade Social Democracia no Brasil”. O senhor descreve, por exemplo, a manifestação de 2 de maio de 2005, em que, por 16 dias, 12 mil membros do MST cruzaram o cerrado para chegar a Brasília. O senhor diz que, provavelmente, esse é um dos maiores eventos de larga escala do tipo marcha na história contemporânea. Que comparações o senhor faria ?

MC – Não achei outra marcha na história contemporânea mundial que fosse desse tamanho. A gente tem exemplo de outras mobilizações importantes, em outros momentos, mas não se comparam na duração e no numero de pessoas a essa marcha de 12 mil pessoas. Houve depois, como eu relatei no rodapé, uma mobilização ainda maior na Índia, também de camponeses sem terra. Mas a de 2005 era a maior marcha.


PHA – O senhor compara esse evento, que foi no dia 2 de maio de 2005, com outro do dia 4 de junho de 2005 – apenas 18 dias após a marcha do MST – com uma solenidade extremamente importante aqui em São Paulo que contou com Governador Geraldo Alckmin, sua esposa, Dona Lu Alckmin, e nada mais nada menos do que um possível candidato do PSDB a Presidência da República, José Serra, que naquela altura era prefeito de São Paulo. Também esteve presente Antônio Carlos Magalhães, então influente senador da Bahia. Trata-se da inauguração da Daslu. Por que o senhor resolver confrontar um assunto com o outro ?

MC – Porque eu achei que começar o livro com simples estatísticas de desigualdades sociais seria um começo muito frio. Eu acho que um assunto como esse precisa de uma introdução que também suscite emoções de fato e (chame a atenção para) a complexidade do fenômeno da desigualdade no Brasil. A coincidência de essa marcha ter acontecido quase ao mesmo tempo em que se inaugurava a maior loja de artigos de luxo do planeta refletia uma imagem, um contraste muito forte dessa realidade gravíssima da desigualdade social no Brasil. E mostra nos detalhes como as coisas aconteciam, como os políticos se posicionavam de um lado e de outro, como é que a grande imprensa retratava os fenômenos de um lado e de outro.


PHA – O senhor sabe muito bem que a grande imprensa brasileira – que no nosso site nós chamamos esse pessoal de PiG (Partido da Imprensa Golpista) – a propósito da grande marcha do MST, a imprensa ficou muito preocupada como foi financiada a marcha. O senhor sabe que agora está em curso uma Comissão Parlamentar de Inquérito Mista, que reúne o Senado e a Câmara, para discutir, entre outras coisas, a fonte de financiamento do MST. Como o senhor trata essa questão ? De onde vem o dinheiro do MST ?

MC _ Tem um capítulo 9 de minha autoria feito em conjunto com o Horácio Marques de Carvalho que tem um segmento que trata de mostrar o amplo leque de apoio que o MST tem, inclusive e apoio financeiro.


PHA – O capítulo se chama “Luta na terra, o MST e os assentamentos” – é esse ?

MC – Exatamente. Há uma parte onde eu considero sete recursos internos que o MST desenvolveu para fortalecer sua atuação, nesse processo de fazer a luta na terra, de fortalecer as suas comunidades, seus assentamentos. E aí tem alguns detalhes, alguns números interessantes. Porque eu apresento dados do volume de recursos que são repassados para entidades parceiras por parte do Governo Federal. Eu sublinho no rodapé dessa mesma página o fato de que as principais entidades ruralistas do Brasil têm recebido 25 vezes mais subsídios do Governo Federal (do que o MST). E o curioso de tudo isso é que só fiscalizado como pobre recebe recurso público. Mas, sobre os ricos, que recebem um volume de recursos 25 vezes maior que o dos pobres, (sobre isso) ninguém faz nenhuma pergunta, ninguém fiscaliza nada. Parece que ninguém tem interesse nisso. E aí o Governo Federal subsidia advogados, secretárias, férias, todo tipo de atividade dos ruralistas. Então chama a atenção que propriedade agrária no Brasil, ainda que modernizada e renovada, continua ter laços fortes com o poder e recebe grande fatia de recursos públicos. Isso são dados do próprio Ministério da Agricultura, mencionados também nesse capítulo. Ainda no Governo Lula, a agricultura empresarial recebeu sete vezes mais recursos públicos do que a agricultura familiar. Sendo que a agricultura familiar emprega 80% ou mais dos trabalhadores rurais.


PHA – Qual é a responsabilidade da agricultura familiar na produção de alimentos na economia brasileira ?

MC – Na página 69 há muitos dados a esse respeito.


PHA- Aqui: a mandioca, 92% saem da agricultura familiar. Carne de frango e ovos, 88%. Banana, 85%.. Feijão, 78%. Batata, 77%. Leite, 71%. E café, 70%. É o que diz o senhor na página 69 sobre o papel da agricultura familiar. Agora, o senhor falava de financiamentos públicos. Confederação Nacional da Agricultura, presidida pela senadora Kátia Abreu, que talvez seja candidata a vice-presidente de José Serra, a Confederação Nacional da Agricultura recebe do Governo Federal mais dinheiro do que o MST ?

MC – Muito mais. Essas entidades ruralistas em conjunto, a CNA, a SRB, aquela entidade das grandes cooperativas, em conjunto elas recebem 25 vezes do valor que recebem as entidades parceiras do MST. Esses dados, pelo menos no período 1995 e 2005, fizeram parte do relatório da primeira CPI do MST. O relatório foi preparado pelo deputado João Alfredo, do Ceará.


PHA – O senhor acredita que o MST conseguirá realizar uma reforma agrária efetiva ? A sua introdução mostra que a reforma agrária no Brasil é a mais atrasada de todos os países que fazem ou fizeram reforma agrária. Que o Brasil é o lanterninha da reforma agrária. Eu pergunto: por que o MST não consegue empreender um ritmo mais eficaz ?

MC – Em primeiro lugar, a reforma agrária é feita pelo Estado. O que os movimentos sociais como o MST e os setenta e tantos outros que existem em todo o Brasil fazem é pressionar o Estado para que o Estado cumpra o determinado na Constituição. É a cláusula que favorece a reforma agrária. O MST não é responsável por fazer. É responsável por pressionar o Governo. Acontece que nesse país de tamanha desigualdade, a história da desigualdade está fundamentalmente ligada à questão agrária. Claro que, no século 20, o Brasil, se modernizou, virou muito mais complexo, surgiu todo um setor industrial, um setor financeiro, um comercial. E a (economia) agrária já não é mais aquela, com tanta presença no Brasil. Mas, ainda sim, ficou muito forte pelo fato de o desenvolvimento capitalista moderno no campo, nas últimas décadas, ligar a propriedade agrária ao setor financeiro do país. É o que prova, por exemplo, de um banqueiro (condenado há dez anos por subornar um agente federal – PHA) como o Dantas acabar tendo enormes fazendas no estado do Pará e em outras regiões do Brasil. Houve então uma imbricação muito forte entre a elite agrária e a elite financeira. E agora nessa última década ela se acentuou num terceiro ponto em termos de poder econômico que são os transacionais, o agronegócio. Cargill, a Syngenta… Antes, o que sustentava a elite agrária era uma forte aliança patrimonialista com o Estado. Agora, essa aliança se sustenta em com setor transacional e o setor financeiro.


PHA – Um dos sustos que o MST provoca na sociedade brasileira, sobretudo a partir da imprensa, que eu chamo de PiG, é que o MST pode ser uma organização revolucionária – revolucionária no sentido da Revolução Russa de 1917 ou da Revolução Cubana de 1959. Até empregam aqui no Brasil, como economista Xico Graziano, que hoje é secretário de José Serra, que num artigo que o senhor fala em “terrorismo agrário”. E ali Graziano compara o MST ao Primeiro Comando da Capital. O Primeiro Comando da Capital, o PCC, que, como se sabe ocupou por dois dias a cidade de São Paulo, numa rebelião histórica. Eu pergunto: o MST é uma instituição revolucionária ?

MC – No sentido de fazer uma revolução russa, cubana, isso uma grande fantasia. E uma fantasia às vezes alardeada com maldade, porque eu duvido que uma pessoa como o Xico Graziano, que já andou bastante pelo campo no Brasil, não saiba melhor. Ele sabe melhor. Mas eu acho que (o papel do) MST é (promover) uma redistribuição da propriedade. E não só isso, (distribuição) de recursos públicos, que sempre privilegiou os setores mais ricos e poderosos do país. Há, às vezes, malícia mesmo de certos jornalistas, do Xico Graziano, Zander Navarro, dizendo que o MST está fazendo uma tomada do Palácio da Alvorada. Eles nunca pisaram em um acampamento antes. Então, tem muito intelectual que critica sem saber nada. O importante desse (“Combatendo a desigualdade social”) é que todos os autores têm longos anos de experiência (na questão agrária). A grande maioria tem 20, 30 anos de experiência e todos eles têm vivência em acampamento e assentamentos. Então conhecem a realidade por perto e na pele. O Zander Navarro, por exemplo, se alguma vez acompanhou de perto o MST, foi há mais de 15 anos. Tem que ter acompanhamento porque o MST é de fato um movimento.


PHA – Ou seja, na sua opinião há uma hipertrofia do que seja o MST ? Há um exagero exatamente para criar uma situação política ?

MC – Exatamente. Eu acho que há interesse por detrás desse exagero. O exagero às vezes é inocente por gente que não sabe do assunto. Mas às vezes é malicioso e procura com isso criar um clima de opinião para reprimir, criminalizar o MST ou cortar qualquer verba que possa ir para o setor mais pobre da sociedade brasileira. Há muito preconceito de classe por trás (desse exagero).


fonte: Conversa Afiada

O capitalismo contra a Mãe Terra

March 29, 2010

Durante 500 anos, tentaram nos fazer desaparecer. Não só fi sicamente, pois tentaram matar nossa língua, música, comida, cultura. Trabalhamos na clandestinidade, preservando ossos saberes, porque sabíamos que um dia iríamos voltar ao caminho do equilíbrio, o Pachakuti (…) Nos dividiram com bandeiras, hinos. Mas nós sabemos que um dia não existirão fronteiras (…) Queremos voltar a ser rebeldes outra vez, mas rebeldes com sabedoria. Estamos nesse caminho, estamos em pleno processo”.


Com essas palavras, o ministro de Relações Exteriores da Bolívia, David Choquehuanca, abriu a reunião preparatória do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU): o UNPFII, na sigla em inglês.

De acordo com o documento final lançado pelas organizações indígenas, o encontro, realizado nos dias 19 e 20 de março, aconteceu em Chuki Apu Marka, como era conhecida La Paz, uma das capitais da Bolívia, país que, devido à atuação do presidente Evo Morales, tornou-se a principal referência internacional da luta indígena em defesa do meio ambiente. Durante a Conferência da ONU sobre o aquecimento global, realizado em Copenhague (Dinamarca), em dezembro do ano passado, Morales – que já havia sido escolhido por organizações indígenas para apresentar ao órgão “Os dez mandamentos para salvar a Madre Tierra” – convocou a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas para a cidade boliviana de Cochabamba, entre os dias 20 e 22 de abril, propôs a realização de um referendo mundial para definir as políticas que enfrentarão o aquecimento global e, fazendo alusão a Fidel Castro, cobrou os países industrializados a pagarem a dívida ecológica em vez de cobrarem a dívida externa dos países em desenvolvimento.


O capitalismo contra a Mãe Terra A reunião preparatória


O UNPFII é um organismo assessor do Conselho Econômico e Social da ONU, efetivado em 2002 “para incidir e sensibilizar na compreensão e cumprimento dos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas do mundo”, de acordo com sua página na internet. Composto por oito membros de governos e oito membros nomeados por organizações indígenas, o fórum se reúne uma vez por ano, mas realiza reuniões preparatórias nas quais são colhidas informações que subsidiarão o encontro anual.

A reunião em La Paz escutou as organizações indígenas da América Latina, que propuseram a inclusão de seus conhecimentos ancestrais nas estratégias para enfrentar a crise econômica. De acordo com a presidente do UNPFII, Victoria Tauli-Corpuz, o desafio é “como viver bem em territórios que são ricos – não só em recursos, mas em cultura –, mas estão na miséria”.

Segundo ela, “antes, nossos governos consideravam os costumes indígenas obstáculos ao desenvolvimento (…) A quinua, por exemplo, antes era comida de pobre; agora, querem se apropriar dela e enriquecer. Descobriram seu valor nutricional (…) É nosso dever proteger nossa sabedoria e não permitir que o mundo rico faça disso uma mercadoria”. Na opinião de Victoria, é preciso aumentar a pressão nos fóruns da ONU e a cobrança sobre os governos, além de influenciar também as corporações.


Projetos prejudiciais


Presidente da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas (Caoi), o peruano Miguel Palacín concorda com as medidas a serem tomadas, mas vê como muito difíceis as condições para tal. “Algumas empresas vivem de criar hidrelétricas, de monocultivos, de mineração etc. Na América do Sul, isso está acompanhado da IIRSA [Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], através da qual os governos e empresas estão comprometidos com esses projetos que vão dividir comunidades com estradas e que terão um grande impacto ambiental. Não sei o que fazer no Equador, onde o presidente faz parte desse processo de mudança do continente, mas há muita briga com os indígenas. No Peru, há uma perseguição contra companheiros exilados. Na Colômbia, a militarização é tremenda”,explica.

O documento emitido pelas organizações indígenas ao final do encontro afirma que seus povos “são as principais vítimas das políticas de desenvolvimento coloniais e capitalistas”, e que “as práticas dos invasores de ontem são as mesmas das empresas transnacionais de hoje”.

O texto adverte, ainda, que as instituições multilaterais ensaiaram diversos conceitos de desenvolvimento – desenvolvimento sustentável, étnico-desenvolvimento, autodesenvolvimento, desenvolvimento humano, desenvolvimento com identidade etc. –, mas a pobreza no território indígena se aprofunda.

De acordo com as organizações indígenas, “o capitalismo engendrou, através de suas políticas, as crises energética, alimentícia, climática, hídrica e financeira, com a finalidade de reacomodar-se para continuar saqueando os recursos da Pachamama [Mãe Terra]”. Por isso, “as soluções defendidas pelo próprio sistema tendem a estender e perpetuar os efeitos negativos sobre nossos povos e territórios”.


ONU: avanços e limitações


Para as organizações indígenas, espaço nas Nações Unidas foi obtido com bastante luta e é responsável por muitas conquistas, mas esbarra na não implementação de seus acordos

Durante a coletiva de imprensa concedida pelos membros do Fórum Permanente sobre Questões Indígenas da ONU (UNPFII) em sua reunião na Bolívia, o Brasil de Fato indagou à presidente do organismo, Victoria Tauli-Corpuz, sobre os avanços concretos obtidos por este em seus oito anos de atuação.

Como resposta, ela afirmou que foram emitidas notas enérgicas contra o massacre em Bágua, no Peru, contra a situação dos índios no Chile e contra os agrocombustíveis. Victoria destacou ainda a criação da Universidade Indígena Intercultural, em convênio com 30 universidades latino-americanas, e a missão realizada na região do Chaco boliviano, onde alguns indígenas Guarani foram libertados do trabalho escravo e a titulação de terras em favor deles foi acelerada. “Falamos com autoridades, despertamos a consciência boliviana para esses trabalhos forçados, desenvolvemos programas com a comunidade Guarani, tivemos reuniões com pecuaristas, latifundiários, que agora sabem desse problema e estão dispostos a fazer cursos de capacitação”, relatou.


Articulação


Segundo ela, “o fórum trabalhou muito nos temas de saúde, meio ambiente, educação e direitos humanos, mas poucas recomendações foram implementadas. Por isso, vamos cobrar dos governos em Nova York [sede da ONU]”, completou.

Tarsila Rivera, quéchua do Peru e coordenadora do Enlace Continental das Mulheres Indígenas da América do Sul, considera os espaços conseguidos na ONU um avanço, uma vez que eles “não foram um presente, mas uma briga que começou na década de 1970, com os nossos avós”, e servem como um mecanismo de pressão. “Não podemos dizer que é ruim, que não serve. Há uma composição paritária, em que dizemos o que está acontecendo, e o fórum pede informação aos governos para que digam o que estão fazendo”, argumenta.

Além disso, Rivera ressalta como ponto positivo as possibilidades de articulação surgidas com a criação do UNPFII. “A partir dele, criamos muitas organizações de mulheres indígenas nacionais e internacionais, como a Fimi [Federação Internacional de Mulheres Indígenas]. Também nos inteiramos da 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo e a Discriminação, tema visto como um problema dos afrodescendentes.

Aí entendemos que havia um racismo estrutural, que não se reflete só na discriminação racial, mas na inexistência de políticas públicas que nos inclua”, exemplifica.


Limites


Contudo, Rivera expõe os limites do organismo: “As mulheres indígenas emplacaram mais de 100 recomendações no fórum nos últimos oito anos, nas áreas da educação, participação política, atendimento à saúde, reconhecimento das nossas medicinas tradicionais etc. Mas algumas coisas não se implementam pela questão do orçamento, como as Metas do Milênio. Não é só assinar”.

Segundo o presidente da Coordenadora Andina das Organizações Indígenas (Caoi), Miguel Palacín, é preciso aprofundar a diplomacia indígena, mas ele também reivindica maior legitimidade a suas organizações. “A ONU é uma instância dos estados. Nós levamos a agenda, mas quem toma as decisões são eles. Queremos que nossos acordos sejam adotados sem nenhum condicionamento. Essa instância deve avançar e proteger os povos indígenas, não as multinacionais. É muito complicado isto, não? É sujeito de direitos uma multinacional que depreda a natureza, mas quando pedimos que a Mãe Terra seja sujeito de direitos, não aceitam”.


Alguns pontos do documento fi nal do encontro do UNPFII:


– Declaramos líder espiritual e político dos povos indígenas de Abya Yala [continente americano] o irmão Evo Morales, como defensor do Viver Bem e dos Direitos da Mãe Terra.

– Pleno respeito e aplicação da Declaração das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas (DNUDPI) e do convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

– A DNUDPI deve ser elevada ao status de lei em cada um dos estados de Abya Yala [continente americano] para garantir sua aplicação efetiva, seguindo o bom exemplo do Estado Plurinacional da Bolívia.

– Declaramos a intangibilidade das cabeceiras de rios, ecossistemas frágeis e vales produtivos, como freio à incursão das empresas transnacionais dedicadas a atividades extrativas.

– A Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, que vem sendo redigida pela Organização dos Estados Americanos (OEA), deve incorporar os direitos da Mãe Terra e da vida, o que tem sido negado pelo Grupo de Trabalho encarregado de elaborar esse documento.

– Elaborar políticas públicas interculturais e participativas sustentadas no Viver Bem.

– Criar o Instituto de Pesquisa do Viver Bem para compilar, sistematizar e difundir o pensamento indígena de harmonia com a Mãe Terra.

– Rechaçamos a transferência da responsabilidade aos países em desenvolvimento pela redução de emissões de poluentes.

– Nos marcos do Convênio 169 da OIT e da DNUDPI, os estados, bancos internacionais e empresas transnacionais não podem de maneira unilateral desenvolver megaprojetos como a IIRSA [Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana], o REDD [Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação] e outros.

– Sancionar as empresas e estados que continuam violando os direitos humanos, coletivos e ambientais, constituindo uma Corte Internacional de Justiça Climática.

– Realizar a Minga [em quéchua, signifi ca “ação coletiva, comunitária”] Global pela Mãe Terra em 12 de outubro de 2010.

– Aderir à convocação da Conferência Mundial dos Povos sobre a Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra (20 a 22 de abril em Cochabamba, Bolívia).

– Solidariedade aos povos do Haiti e Chile, vítimas de devastadores terremotos.



Por Vinicius Mansur ao Alainet.org

O mundo sem Jack Bauer

March 29, 2010
Depois de oito temporadas, a série 24 Horas, produzida e estrelada por Kiefer Sutherland, foi oficialmente “descontinuada” alguns dias atrás. O mundo perde, assim, o maior dos heróis da era Bush: Jack Bauer.

Trata-se de um fato aparentemente menor da indústria cultural, mas que guarda profundo significado político, pelo menos do ponto de vista simbólico.

24 Horas surge após os atentados contra as torres gêmeas, em 11 de Setembro de 2001, e funcionam do ponto de vista imaginário como um suporte às políticas de exceção adotadas pelo governo estadunidense. Ela é significativa por seu discurso e por sua trama, mas, mais que isto, ela conquistou enorme sucesso nacional e internacional por conta de sua forma.

Leia também:
Os fuzis da senhora Clinton
O debate da política externa: os progressistas
A conferência de comunicação particular da direita
A ideia de um dia de tensão, dividido em 24 episódios de uma hora cada, exibidos em 24 semanas, resultou, neste seriado, numa forma que se casava excepcionalmente bem com o conteúdo que ela buscava transmitir. A direita extrema, que por muito tempo andara sem discurso, encontrara não apenas o que dizer, mas, o que às vezes é mais importante, um “como dizer” extremamente bem sucedido, até do ponto de vista artístico.
Claro que não foi Bauer que inventou o “clock movie”, o cinema ou a TV em tempo real, mas ele deu um novo sentido a ele.
No dia sem descanso de Jack Bauer, que se prolonga na prática por quase meio ano (sem contar as reexibições), estão contidos os conceitos de exceção e da ameaça permanente. No dia sem descanso de Jack Bauer, o herói premido pelo tempo, o que o “obriga” a agir sem limites. No dia sem descanso de Jack Bauer não há tempo para ir ao banheiro, mas sempre há um machado por perto para cortar a mão de um terrorista que não quer “colaborar”.
Apesar de ser um herói sem limites, um Chuck Norris dos tempos em que Chuck Norris virou uma piada, Jack Bauer é, desde um início, um herói fracassado. O terrorismo de grupos isolados ou de Estados potencialmente perigosos (China, um país africano etc.) é sempre maior do que a sua capacidade de agir, sozinho ou em companhia de seus amigos da unidade de combate ao terrorismo.
A melhor tradução disto não apareceu na série, mas na propaganda de um veículo que Sutherland veio gravar no Brasil. Nela, dentro de um carro, Bauer goza de conforto e silêncio, enquanto as ruas de São Paulo são destruídas sabe-se lá por que ou por quem. Ou seja, o espaço de tranquilidade que sua ação garante é pequeno e provisório. O mundo ameaçador continua lá fora, e Bauer não pode nem ao menos abrir a porta.
A ideia de um heroísmo fracassado, por paradoxal que parece, foi muito útil ao domínio do Estado pela direita extrema estadunidense, embora ela expressasse a impotência da política. Porque uma guerra sem fim exige uma mobilização sem fim e abre as portas para todo o tipo de prática “excepcional”. Lembremos que, quando foi preciso, Bauer torturou o presidente, sinal inequívoco de que a luta ao terror deveria poder passar por cima das instituições.
Outra característica da ação de Bauer é a convivência com governantes que, no campo do imaginário, correspondem aos democratas: presidentes negros e mulheres, que antecederam ou sucederam gestões que tinham uma cara mais “republicana”. O republicanismo radical de Bauer se colocava acima de todos, e todos dependiam dele.
Agora, estamos num mundo que não precisa, pelo menos do ponto de vista simbólico, de Jack Bauer.
Viva a Era Obama!, alguém vai festejar.
Tudo bem, do ponto simbólico, é possível comemorar o fim de Jack Bauer. Mas as guerras reais e prisões ilegais de Bush, no Afeganistão, no Iraque, em Guantánamo e nos aeroportos dos Estados Unidos, continuam aí. Com Obama e Hillary Clinton fazendo o serviço sujo que não acaba com a aposentadoria de Bauer.
PS: O discurso da guerra ao terror de Bush continua a justificar barbarismos ao redor do mundo. Putin correu e anunciou que os ataques desta segunda-feira (29) em Moscou foram realizados por rebeldes chechenos, enquanto um jornal russo escrevia: “Parece que se trata de duas shahidis, mulheres bombas do Cáucaso, que fizeram um pacto de sangue, em que estas porcas “honram” a morte de familiares masculinos com esse tipo de covardia. Porém, há rumores que poderia ter sido perpetrado por elementos hostis ao Islã, para denegrir o seu nome. O mais provável seria a primeira hipótese, pessoas que detestam seres humanos. Terão de ser exterminadas.”

*Por Haroldo Ceravolo Sereza, jornalista e diretor de redação do site Opera Mundi

Bush limpa a mão em Clinton após cumpimentar haitiano.

March 27, 2010


Durante a visita ao Haiti, o ex-presidente norte-americano George W. Bush demonstrou mais uma vez toda a “generosidade”, “solidariedade” e “compaixão” que ele, um ex-líder mundial tem pelo povo haitiano.

Abaixo, o vídeo:

Scorpions – Humanity

March 26, 2010

The Union: O Negócio por trás do Barato

March 26, 2010

Sinopse

O comércio ilegal da maconha se transformou num negócio gigante, que movimenta $7 bilhões de dólares anualmente apenas no Canadá. Embora o documentário aborde de forma sucinta os princípios e políticas passadas que classificaram a maconha como “uma droga poderosa e perigosa”, apresenta uma pergunta bastante válida. Por quê?

Durante a II Guerra Mundial, o governo americano reverte seu posicionamento e decide que o cânhamo é um importante “commodity”. Eclode a Guerra do Vietnã e os protestos iniciados pelos hippies, então o presidente Nixon decide torná-la ilegal outra vez, apesar de todos os estudos médicos afirmarem que ela não tinha efeitos negativos. O documentário mostra como os cultivos caseiros se transformaram num negócio multibilionário. Mesmo assim, a sociedade recusa a aceitar seus benefícios naturais e continua a gastar milhões para processar e prender aqueles que a cultivam, vendem ou fumam.

Informações
Tamanho: 700 MB
Legendas: Português
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Ler devia ser proibido.

March 25, 2010


A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.

Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação.


Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verosimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.


O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incómodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metros, ou no silêncio da alcova… Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.

Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.

Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Além disso, a leitura promove a comunicação de dores e alegrias, tantos outros sentimentos… A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna colectivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.

Ler pode tornar o homem perigosamente humano.



Margem da Palavra

Sobre democracias & hipocrisias

March 25, 2010

Os cubanos conhecem muito bem seus problemas internos, ao contrário do que supõem os inimigos, mas preservam, como raros povos no mundo, o sagrado direito da autodeterminação

16/03/2010

Luiz Ricardo Leitão


A vida é muito dinâmica e, a cada dia, nos propicia pródigas lições sobre a desfaçatez humana. Este cronista, por exemplo, já se preparava para escrever sobre o último carnaval, em que, mais uma vez, as contradições suscitadas pela dimensão ‘espetacular’ da festa em oposição à sua iniludível origem popular suscitaram um intenso debate entre os foliões cariocas, baianos e de outras províncias da nossa Bruzundanga. De súbito, vi as páginas de opinião da grande imprensa nacional e estrangeira invadidas por severos editoriais de condenação ao governo cubano pela morte do autoproclamado “preso político” Orlando Zapata Tamayo, após um longo período em greve de fome. Ato contínuo, voltaram a circular pela rede virtual artigos e textos hostis ou simpáticos ao regime de Fidel, Raúl & Cia., repletos, como sempre, de prognósticos e palpites sobre o futuro da ilha.

Esse enredo não é novo, pensei cá com meus botões. Em outubro de 1991, já no Período Especial, Noam Chomsky aventava algumas hipóteses sobre o destino insular. Declarava o pensador que os EUA não invadiriam Cuba enquanto temessem uma forte resistência armada no país. A tática de Washington seria, pois, apostar no estrangulamento econômico, a fim de que a situação interna piorasse, de tal forma que os protestos se multiplicassem e, em decorrência disso, as medidas repressivas se tornassem inevitáveis. Os desdobramentos eram previsíveis: devido aos efeitos cada vez mais nefastos do bloqueio, as ações do aparato de repressão viriam a ser cada vez mais rigorosas e, com isso, terminaria por instituir-se “o ciclo natural de mais repressão, mais dissidentes e talvez violência”.

Essa era a senha para o retorno dos marines à terra de Martí. A imprensa ianque já poderia até escrever os editoriais sobre a iminente ação imperial no arquipélago vizinho: “Libertamos Cuba”, “Todo o hemisfério é democrático” e outras balelas do gênero, prognosticava Chomsky, convencido, porém, de que o plano mais racional ― em certa medida aplicado ― consistiria em esperar que tudo desmoronasse na pérola do Caribe. A manutenção do bloqueio, o corte dos créditos, a quarentena cultural e as medidas “cirúrgicas” para impedir a ruptura do isolamento resultariam em mais sofrimento para a ilha e, por extensão, mais dissidência, protestos e rebeliões.

Passaram-se quase vinte anos – e até os oráculos falharam. Os cubanos conhecem muito bem seus problemas internos, ao contrário do que supõem os inimigos, mas preservam, como raros povos no mundo, o sagrado direito da autodeterminação. E, politizados e instruídos, têm acompanhado com muita atenção as didáticas lições que o mundo pós-moderno lhes enseja. Eles hoje podem avaliar com precisão o que foi a opção da ex-URSS pela vistosa “economia de mercado”, que deixou a Rússia entregue ao poder das máfias e monopólios. Eles veem ao seu lado o Haiti devastado pela eterna servidão colonial, tutelado de forma grotesca pelas forças da ONU, padecendo a mais grave tragédia social do Ocidente. E sabem que a aparente “paz e prosperidade” do modelo neoliberal na América Latina não passa de um espelhinho dourado para encantar os analfabetos políticos.

Agora mesmo, após o brutal terremoto que sacudiu o Chile, já estão eles a receber notícias sobre os eventos na pátria de Allende e Neruda, dando-nos conta de que, no dia seguinte ao abalo, havia um cenário de caos social, com saques a supermercados em várias cidades, que obrigaram a presidente Bachelet a pôr o Exército nas ruas para conter a onda de roubos. Em Cuba, quando um furacão açoita o território, além de não se perderem milhares de vidas (como ocorre no vizinho Haiti), nunca se registram as cenas de barbárie a que se assiste na América do Sul. Estado e sociedade civil são aliados na luta de reconstrução do país, tarefa que é bastante facilitada pelo alto grau de organização social da população.

Por isso, não estranho que as vozes mais contundentes contra Cuba emanem da Espanha e dos EUA, ou dos bolsões mais reacionários de Bruzundanga. A altiva ex-colônia incomoda muito suas ex-metrópoles, que, em termos de democracia, quase nada têm a ensinar. Em meio à crise que grassa na periferia (e núcleo) da União Europeia, o governo de Madri arvora-se em grande defensor da democracia e exige a “libertação” dos presos políticos cubanos, esquecendo-se das centenas de separatistas bascos encarcerados em suas prisões. E a tchurma de Obama, que até hoje não cumpriu a promessa de desativar Guantánamo, reitera com o cinismo usual a “apelação humanitária” dos espanhóis. Mais irônico que isso, só mesmo o voto de pesar que o hipopótamo Heráclito Fortes (DEM-PI) expressou no Senado pela morte de Zapata. Pelo visto, nem a prisão de Arruda abalou tanto os nossos “democratas”…

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Extranjeros: reflexões, crônicas e ficções de um brasileiro em Cuba no “Período Especial”.


Bertolt Brecht – Aos que virão depois de nós

March 25, 2010

I
Eu vivo em tempos sombrios.
Uma linguagem sem malícia é sinal de
estupidez,
uma testa sem rugas é sinal de indiferença.
Aquele que ainda ri é porque ainda não
recebeu a terrível notícia.

Que tempos são esses, quando
falar sobre flores é quase um crime.
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?
Aquele que cruza tranqüilamente a rua
já está então inacessível aos amigos
que se encontram necessitados?

É verdade: eu ainda ganho o bastante para viver.
Mas acreditem: é por acaso. Nado do que eu faço
Dá-me o direito de comer quando eu tenho fome.
Por acaso estou sendo poupado.
(Se a minha sorte me deixa estou perdido!)

Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo.

Eu queria ser um sábio.

Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria:
Manter-se afastado dos problemas do mundo
e sem medo passar o tempo que se tem para
viver na terra;
Seguir seu caminho sem violência,
pagar o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Sabedoria é isso!
Mas eu não consigo agir assim.
É verdade, eu vivo em tempos sombrios!

II

Eu vim para a cidade no tempo da desordem,
quando a fome reinava.
Eu vim para o convívio dos homens no tempo
da revolta
e me revoltei ao lado deles.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.
Eu comi o meu pão no meio das batalhas,
deitei-me entre os assassinos para dormir,
Fiz amor sem muita atenção
e não tive paciência com a natureza.
Assim se passou o tempo
que me foi dado viver sobre a terra.

III

Vocês, que vão emergir das ondas
em que nós perecemos, pensem,
quando falarem das nossas fraquezas,
nos tempos sombrios
de que vocês tiveram a sorte de escapar.

Nós existíamos através da luta de classes,
mudando mais seguidamente de países que de
sapatos, desesperados!
quando só havia injustiça e não havia revolta.

Nós sabemos:
o ódio contra a baixeza
também endurece os rostos!
A cólera contra a injustiça
faz a voz ficar rouca!
Infelizmente, nós,
que queríamos preparar o caminho para a
amizade,
não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas vocês, quando chegar o tempo
em que o homem seja amigo do homem,
pensem em nós
com um pouco de compreensão.